Tesouras Notícias
sábado, fevereiro 18, 2012
Escrito por Thadeu Cajado
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Silvanira Freitas Gravatá - "Mãe Lenita" |
Parece que foi anteontem o dia
em que eu, já nos idos dos meus vinte anos, adentrei timidamente a residência daquela
senhora de aparência frágil e andar vagaroso. A casa tinha o teto rebaixado, paredes
caiadas de amarelo, portas e janelas de madeira, simples, porém não menos acolhedora
e aconchegante.
Logo, na chegada, me apresentei,
disse minha graça e o que me levava até ali. Fui breve, queria mesmo era fazer
o ontem ser hoje, o agora, àquela hora...e fomos reviver, ela, o passado
límpido de sua vida, e eu, o mundo que desejava habitar e que o tempo me era
nada generoso.
Lá estava, na sala, dona
Silvanira Freitas Gravatá, ou mais adequado para sua missão neste mundo: Mãe
Lenita, sentada num sofá de encosto alto e macio, coberto por uma manta de
retalho dos mais coloridos e estampados; o piso parecia ter sido lustrado pra
noite de gala, para um baile ou para visita há muito esperada; Da estante de
madeira torneada saltavam porta-retratos, eram as revelações primeiras - antes
de uma palavra, sequer -, sobre quem são todos aqueles que figuravam naquelas
fotografias. Tudo adequadamente em seu lugar, num esmero revelador.
Na ocasião, pesavam sobre seus
ombros e pés (únicas partes do corpo que reclamavam algum incomodo) 90 anos,
com margem de erro para alguns anos a mais. No tempo dos seus pais, registrar
menino era luxo pra pouca gente, era dificultoso, carecia procurar cartório e
testemunhas; quando era possível registrar, sendo isso alguns anos depois dos
nascimentos das crianças, havia transcorrido tanto tempo que nem mesmo quem
gerou guardava o ano da rebentação. Ficava o dito pelo não dito, e ia toda
prole de cinco, oito ou mesmo 10 meninos, com anos de diferença, registrar no
mesmo dia. Daí a controvérsia entre ter nascido em 1915 ou em 1908.
Também estava na sala uma mulher
bonita, garbosa, de pé, na soleira da porta, entre a sala, qual estávamos, e a
cozinha, sempre a auxiliar mãe Lenita em suas incursões pelo passado,
relembrando um fato ou colocando em sua boca as palavras encobertas pelas tramas
do tempo. Mais pessoas ocupavam o ambiente das quais não me recordo muito bem,
mas sei que estavam lá, ouvindo a tudo atentas e receptivas. Mesmo para elas, que
conviviam com aquela senhora de muitas histórias, parecia-lhes estranho tantas
perguntas e curiosidades de um menino imberbe que chegara como quem viesse
buscar notícia de um ente que mora longe e pouco se comunica. Eram muitas as
histórias a serem desfiadas naquela tarde quente de primavera.
Não me ative às controvérsias da
idade, Isso pouco me interessava, bastava mesmo era sua memória estar viva,
poder falar, ter paciência para tanta aporrinhação de um jovem conversador e
cheio de curiosidades. E teve, como teve, me surpreendi com tamanha
generosidade, riquezas de detalhes e parcimônia. Mansidão e cuidados que só as avós
carregam sobre o semblante de labutas, mas também de realizações.
E falando em labutas e batentes,
a vida não foi tão fácil para esta senhora negra e de origem humilde. Nascida
em família de poucas posses e marcada pela dor da escravidão, aportara neste
mundo pelas bandas de Maracás, ali permanecendo entre seus familiares por pouco
tempo, logo fora levada para Amargosa e, de lá, para Areia, hoje, Ubaíra, ali o
destino lhe reservava mais partidas, outros caminhos e outra família, sendo
esta de patrões, o que não lhe tirava o mérito dos cuidados e da orientação.
Através dela chegara às terras das cabrucas do cacau, por intermédio do senhor
Patrício R. Teixeira e da senhora Edith C. Teixeira, pais de uma grande
personalidade no Direito, na literatura e na política: Euclides Teixeira Neto, com
quem cultivou duradoura amizade e compadrio.
Quando chegou pelas bandas de
Tesoura estava aos 15 anos de idade, já experimentada pelas andanças entre
Maracás, Amargosa e Areia. Morou, por pouco tempo, acompanhando a família
Teixeira, em Barra do Rocha, mas logo retornando à Tesouras na expectativa de
“fazer seu terreno” trilhando um percurso próprio. Criou asas, voou caçando
jeito de dar rumo à sua própria vida.
E se fez independente, casou-se
como senhor Uilson, constituiu família e aos 25 anos deu inicio à sua missão:
ser parteira, dona das mãos que por seu intermédio vieram ao mundo 2.100 (dois
mil e cem) meninos, gente que hoje campeia em nosso torrão, em São Paulo,
Brasília, Rio de janeiro, Belém do Pará e até no exterior, como ela mesma dizia
sobre seus rebentos de suor, devoção e aflição. São eles das mais variadas
profissões: advogados, médicos, soldados, engenheiros, professores etc...ali
desvendava-se o mistério de tantas fotografias ordenadamente dispostas em sua estante de
madeira torneada. Também cozinhava, era dela o tempero mais requisitado nos
lautos jantares na Loja maçônica e nas casas dos doutos donos de anéis e
diplomas.
Exerceu durante muitos anos a
função de enfermeira prática, acompanhando os doutores: Rito, Anísio, Nelson e
Aristóteles, cabendo-lhe a função de parteira, mas sempre sabendo dos seus
limites, “até onde dava pra eu ir, eu ia” disse-me afirmando suas limitações, já
que não houve tempo para o estudo; a escola, sonho confessado nas horas de
conversa, ficara aplacada na memória como prostrada num altar repleto de luzes
e delírios, sonhos tolhidos para os que ainda hoje trazem na tez a força da
África, e não da senzala, como insistem alguns tantos por ai. Mesmo faltando o
diploma e o anel pra ornar-lhe o dedo, era ela quem fazia exemplarmente o que muitas
vezes cabia aos médicos, e sem cobrar nada por isso, aliás, nunca cobrou por
nenhum parto que fez!
Em seus cadernos de anotações,
os que restaram após furto em sua residência, constavam os nomes de boa parte da
gente que ajudou a nascer. Constavam também as datas dos nascimentos e outras
informações julgadas como dignas de notas. Ela fez questão de me mostrar estes
cadernos repletos de datas e nomes. Lembro que fui tomado por forte emoção, ali
constavam nomes de muitas crianças, todas nascidas vivas e saudáveis por vossas
mãos.
Perguntada sobre quais
procedimentos eram usados para realização dos partos, ela respondeu: “Comigo
era assim...eu tratava como se fosse o médico, viu, porque minha experiência
era... vinha assim como uma intuição que eu tinha. Eu tinha uma intuição de fazer como fazia, eu mesmo não sabia como
era, “num” era?...vinha aquela intuição então eu fazia... quando vinha a criança, quando a criança era homem, quando
era “mulé”, era “pêra” uma intuição que eu tinha, se fosse bom e se fosse ruim,
eu tinha intuição, se fosse pra mim, se fosse pra o médico, eu tinha aquela
intuição. Então, graças a Deus fui muito feliz durante os tempos que peguei “minino”,
eu fui muito feliz, viu! Deus me protegeu, nunca teve nada nas minhas mãos,
nunca aconteceu nada comigo, graças a Deus!”
E foi assim em todos os 2.100
(dois mil e cem) partos feitos por esta filha de Nanã e Ogum: pela intuição, pelo
cuidado e amor ao próximo, pela sensibilidade e respeito à energia que
entornava este ato sagrado. Nunca pôs em risco a vida dos bebês tampouco das
parturientes.
Mulher de fibra, solidária,
alegre e festeira. Nos carnavais antigos, aqueles que não voltam mais, cordão de
caboclo igual ao seu não existia; ela reunia um grupo com homens, mulheres,
crianças e, fantasiados de entidades das
matas, serpenteavam pelas ruas da cidade, entoando músicas, lamentos, chulas e
puluxias. Dançava, sambava, rodava, reverenciava as entidades indígenas e
africanas, tudo com muita vivacidade, entusiasmo e respeito.
Seus carurus espalhavam gente
por todos os cômodos da casa, indo parar até na rua. A casa era pequena pra
tanta gente que ia se deliciar com seus quitutes e entoar os estribilhos da
reza que antecipava a comilança. Em tempo de natal, seu presépio era a coisa
mais linda de se ver, fazia questão de reservar o primeiro quarto da casa para
sua montagem. Era imponente, primoroso, uma montanha de onde se equilibravam
imagens sagradas e outras nem tanto, mas que cumpriam com a função de
referência e devoção. Chegou um tempo que o conservava impecável o ano inteiro,
ela resolveu, por motivos que não me ficou totalmente esclarecido, não
desmontá-lo. Só sei que este presépio possuía uma função de altar de
penitências, reverências e dedicação ao culto sagrado do menino Jesus e das
suas entidades mágicas.
E os partos, as festas: Cordão
de Caboclo, caruru, presépio/altar... tudo isso foi se perdendo no tempo com a
idade avançando e o corpo pedindo repouso, decerto que muita coisa ainda
permanece viva, como tudo que até agora relatei e que jamais morrerá, porque
enquanto houver história, memória e palavra, existirá a vida dessa grande
mulher que há pouco nos deixou.
Partiu quase no esquecimento de
uma cidade inteira, já que não morava mais pelas bandas de Ibirataia (e mesmo
quando por lá morava as visitas eram poucas), pois precisou ausentar-se da
cidade que lhe fez mulher e mãe de vasta prole; ali, na pequena cidade incrustada
entre dois rios e altos morros cobertos do que de mata restou, não havia quem
lhe reservasse o cuidado e dedicação; fora morar em Eunapólis aos cuidados de
parentes e lá subiu aos céus, tranquila, como todos os justos e bons de
coração. A vida lhe foi generosa, não lhe dera riquezas materiais, mas lhe deu
dois mil e cem filhos, vida longa e dignidade.
Hoje, tomado pelo saudosismo e
tristeza trazidos pela notícia de sua ausência eterna, rabisco essas breves
linhas como um neto que dedica seus poemas à avó e, talvez, as palavras,
quaisquer que sejam elas de amor ou gratidão, não sejam capazes de dizer o que
realmente senti ao me deparar com aquele ser de aparência frágil e de alma e
coração gigantes. Mas é preciso partir do princípio das palavras para
compartilhar com você, leitor, o meu encontro com ela, e que as mesmas não
podem dizer com precisão e olhos marejados, mas servirão como canal de contato
e aproximação!
Mãe Lenita, que Olorum te guie e proteja sempre. Axé!
Thadeu Cajado